terça-feira, março 07, 2006


Ali "Farka" Touré @ Monsanto - 22/07/05
A 20 de Julho de 2005 Luís Rei, em antevisão ao concerto de Ali "Farka" Touré em Lisboa (22 de Julho), publicava o seguinte artigo no seu seu blog crónicas da terra:

Ali "Farka" Touré - uma lição de vida em 180 minutos, na próxima sexta-feira em Lisboa

Um sonho que se torna realidade. Ver Ali Farka Touré em palco. Algo que nos últimos dez anos tem sido raro, dado as responsabilidades de chefe de família, agricultor e, mais recentemente, de presidente da Câmara Municipal de Niafunké, pequena aldeia no norte do Mali banhada pelo Rio Niger, no começo do deserto do Saara.

Falar com Ali "Farka" Touré é também muito difícil. Nesta pequena digressão de 2005, a lenda viva não tem dado entrevistas individuais, apenas conferências de imprensa. Por isso mesmo, na semana em que o músico maliano actua no Anfiteatro Keil do Amaral (esta sexta-feira, dia 22), vale a pena recuperar uma vez mais a entrevista que tive a sorte de efectuar em 1999, ano de edição do último álbum de originais a solo: "Niafunké". Conversa publicada originalmente no suplemento Vida d' O Independente.
Obrigado C.M. de Lisboa e Incubadora d'Artes por nos darem o prazer de ver este "gigante" de África na Capital.
Não foi fácil falar com Ali Farka Touré. Não é todos os dias que este senhor de 60 anos tem acesso a um telefone, no Mali; e nem sempre é fácil compreender o seu francês, falado com longas pausas (próprias de quem se levanta com o nascer do sol e se deita com o crepúsculo) e frases nem sempre concretizadas. Afinal Ali Farka Toure, além de excelente músico, é um verdadeiro homem do campo.
O Mali é um país de músicos - Você, Oumou Sangare, Toumani Diabaté, Salif Keita. Será que isso tem a ver com o facto de ao longo de séculos vigorar a cultura musical griot (N.R. músicos que tocavam para os imperadores do Império Mandinga de origem muçulmana que se estendeu pela África Ocidental a partir do Sec XIII)?

O Mali não é um país de músicos, mas há músicos no Mali. É um país histórico onde existem etnias distintas. Eu sou sonrai, estou longe de ser griot e de ser escravo. Aqui não existem fronteiras. Cada pessoa traça o seu destino ao fazer música. Para mim a música é uma filosofia de educação e de amor.
É verdade que, à semelhança de Salif Keita, os seus pais opuseram-se ao facto de tocar, pelo facto de fazer parte de uma classe nobre?
Os meus pais eram realmente contra o facto de eu ser músico. Durante a minha carreira sempre tive receio de pegar na guitarra enquanto me encontrava ao pé da minha mãe. É que antes de ser músico já era agricultor e pilotava barcos. Profissões mais úteis à nossa etnia.
Apesar de ter tido uma carreira brilhante como músico fora do Mali, nunca deixou de ser agricultor. E parece que foi o dinheiro que ganhou com a música que lhe permitiu comprar máquinas modernas para melhor fazer a lavoura. Verdade?

Sim. Toda a vida estive ligado à agricultura e todo o dinheiro que ganho com a música tenho investido na agricultura. Não devemos pôr açúcar no mel (N.R.: metáfora que significa não devemos aplicar o dinheiro que ganhamos com a música, na música) porque isso daria uma mistura demasiado doce. A música permitiu a evolução do meus métodos de trabalho agrícolas. Até porque não podemos fazer música se não tivermos a barriga cheia, não é?

Parece-me que continua a preferir a agricultura à música.
Sim, porque a agricultura é uma cadeia de vida. Os animais comem, os homens comem. Sustenta um ciclo maior que a música. Esta é boa apenas para quem toca e escuta.
Vivendo numa vila (Niafunké) situada à entrada do Sara, em que os terrenos são muito arenosos, gostaria de saber o que é que planta.
Vivo perto do deserto, mas também perto do rio o que me permite ter terrenos férteis. Aqui posso plantar tudo o que preciso: trigo, milho, feijões, batatas, mangas, goiabas, tangerinas, laranjas, papaias… e, claro, também pesco.
Não tem dado muitos concertos fora do seu país e por diversas vezes anunciou retirar-se da vida artística. Isso tem a ver mais uma vez com a agricultura, ou com o cansaço das digressões?
Não digo que não dê concertos, mas preciso em primeiro lugar terminar todas as culturas, todos os trabalhos agrícolas. Não posso permitir-me a fazer aquilo que fazia há 10 anos atrás, altura em que comecei a tocar pelo mundo inteiro e a estar muito tempo fora de casa. Tenho 11 filhos, sou avô de 8 crianças, tenho muitas bocas para alimentar. Ainda viajo, mas só durante uma semana. O máximo é um mês. Depois volto.
Nunca sentiu vontade de viver na Europa, à semelhança de muitos músicos africanos?
(um grande assobio, como se isso fosse totalmente impossível). Nunca. Não gosto do estrangeiro, gosto de fazer o meu trabalho e de regressar à minha casa no fim do dia. Adoro o espaço, a terra, nunca poderia viver num apartamento. Tenho de estar perto da natureza.
Quando colaborou com o Ry Cooder em “Talking Timbuktu” sentiu que tivesse aprendido alguma coisa?
Não. Nada.
E o que é que você lhe ensinou?
Ensinei-lhe algumas coisas, quanto mais não seja o facto de ter descoberto a essência da música africana. Ele vem ao Mali em breve, no ano 2000, e ficará cá durante duas semanas.
Pensa que o Taj Mahal e o Ry Cooder têm ainda muito a aprender consigo, sobretudo na forma de tocar guitarra?
Entre o Ry Cooder e o Taj Mahal existem muitas diferenças. Durante os anos em que viajei pela Europa e Ásia, o Ry Cooder tornou-se num génio da música ocidental. É um dos melhores para mim, porque faz aquilo que deve ser feito. É a sua vida. O Taj Mahal é um professor, não meu, mas dos jovens que ensina. Tenho muito a aprender mas não há-de ser com ele. Nós somos de etnias diferentes, temos culturas diferentes, almas diferentes. Mas ele é muito aberto e generoso e isso agrada-me. (N.R: apesar de Taj Mahal ter nascido nos Estados Unidos, Ali Farka Touré considera-o um africano a viver na América, devido ao sistema de crenças em que acredita, cujos antepassados traçam as origens do ser humano).
A sua música é influenciada por experiências espirituais. Segundo consta, o Njarka (pequeno violino local de uma corda) é um instrumento bastante perigoso, porque quando mal usado pode evocar os maus espíritos. É capaz de explicar?
O Njarka é o instrumento mais perigoso de África e do Mundo. Quem o toca nunca poderá aspirar a ter grande longevidade. É um bom instrumento e ao mesmo tempo um mau instrumento, porque quem não tem cuidado pode ficar louco. Conheço muitas pessoas que enlouqueceram. A primeira vez que peguei no Njarka tinha 12 anos, nessa altura ao brincar com o instrumento quase morri. O Njarka deixou-me imobilizado e fui picado por uma cobra.
Pensa que a música é uma forma de chegar ao mundo espiritual?
Não acho. Tenho a certeza. É como entrarmos dentro de água, num mundo real que não é totalmente visível aos nossos olhos.

Hoje, uns meses depois e também por via blog - juramento sem bandeira - soube da triste notícia da morte deste grande artista, não sendo um grande conhecedor fica aqui o meu sinal de respeito e admiração por um músico que, acima de tudo, tinha uma grande alma e isso notava-se - e de que forma - na sua música.

1 Comments:

Blogger Lerato said...

Bem, eu soube por ti, vai deixar um grande legado em termos musicais, como homem em alguns aspectos, noutros podia ter aberto mais os horizontes nas visitas que fez pelo estangeiro que não gostava...

2:31 da tarde  

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